22/02/2005

Nunca Tinha Pensado Nisso


No escuro silêncio da urna

Por José Ricardo Costa

Imagine que vivíamos numa democracia absoluta, em
que tudo, mas mesmo tudo, era decidido pelo voto
popular. Por exemplo, os jogadores convocados para a
selecção nacional, escolhidos por sufrágio
universal.

Ora, dentro da urna, o voto de uma velhinha, que nem
sabe que o futebol se joga com 11 jogadores, teria o
mesmo valor e estatuto do voto de Gabriel Alves.
Entretanto, uma menina que nem sabe o que é um
off-side vota no Beto só porque adora as suas
pernas. Um outro senhor vota no Carlitos porque
andou com ele ao colo quando era bebé.

Votos que, dentro da urna, valem o mesmo que o de
Gabriel Alves, um cientista do futebol que sabe mais
sobre a complexidade do esférico do que Edgar Morin
sobre a esfera da complexidade. Ora, parece-me que
há aqui algo que não bate certo. E, se não bate
aqui, também não bate na política.

Uma pessoa lê diariamente jornais para estar
informada sobre o que se passa à sua volta. Tem
conhecimentos básicos sobre economia, os princípios
ideológicos de cada partido ou sobre aspectos
importantes da política internacional.

Pois. Mas, no dia 20 de Fevereiro, o seu voto,
dentro da urna, vale tanto como o de alguém que
confunde os dois partidos dos irmãos Portas, ou que
vota num partido só porque gosta mais do sorriso
plastificado do seu candidato. Os votos, dentro da
urna, não falam, nada explicam, nada argumentam.

Eis a verdade: uma pessoa tem o direito de votar só
pelo facto de existir. Mas, será justo que o voto de
um eleitor informado valha o mesmo que o voto de um
politicamente analfabeto que, se houver um debate
importante na TV, muda logo para a telenovela,
porque de política nada percebe nem quer perceber?

Não será tal situação tão injusta como a de um aluno
que estuda, trabalha, é responsável e, depois, acaba
por ter a mesma nota de um outro que nada faz e nada
sabe?

Um médico não vai à sala de espera do hospital fazer
um inquérito aos doentes sobre o tratamento que deve
dar a alguém que está no consultório. Nem o piloto
de um avião sai da cabine para perguntar aos
passageiros o que deve fazer numa situação de
emergência. Só um outro médico ou piloto o poderiam
fazer.

Ora, pedir o voto a alguém que nada sabe de
política, isto é, pedir a sua opinião sobre o rumo
que o país deve levar, é o mesmo que pedir aos
passageiros de um avião para escolherem a melhor
opção. E escolher um governo ou um PR não é bem o
mesmo que escolher alguém para vencer a Quinta das
Celebridades, usando como critério a "simpatia", a
"atitude", a "maneira de estar".

Daí eu achar o seguinte. Numa verdadeira democracia,
o voto não deve ser um direito absoluto e
incondicional, caído do céu. Implica também deveres.
Cada cidadão deve provar que tem condições para
votar, que é responsável pelo seu acto. Para isso, e
tal como o condutor de um veículo, deveria possuir
uma certidão eleitoral, depois de mostrar ter
condições para a obter ao revelar conhecimentos
básicos sobre a Constituição, economia, ideologias,
direito ou política internacional.

Isto teria várias vantagens.

Todos os votos deitados na urna teriam o mesmo
valor. É verdade que há melhores e piores
condutores. Mas, sem um conjunto de requisitos
mínimos, ninguém tem licença para conduzir um
automóvel. Com os eleitores passar-se-ia o mesmo.

Os votos reflectiriam uma avaliação mais consciente
e responsável e não motivos fúteis e ridículos como
acontece com um eleitorado ignorante, inculto e
irresponsável.

Isto obrigaria ainda a classe política a evoluir.
Com um eleitorado mais exigente, os políticos não
cairiam tanto em pulsões carnavalescas ou em
propaganda Tide. Os verdadeiros eleitores teriam
finalmente os políticos que merecem e não os
políticos que são obrigados a ter pelo facto de
todos os portugueses serem eleitores.

Eu sei que isto pode deixar algumas pessoas
horrorizadas. Que vai contra o princípio do sufrágio
universal e a ideia de igualdade trazida de 1789.
Sim, eu sei, como diria o Vítor Espadinha. Mas
também sei que a democracia, para sobreviver, deve
renovar-se e tornar-se mais exigente.

A democracia que conhecemos foi excelente para
combater o Antigo Regime, os absolutismos, as
tiranias, as caducas aristocracias de outrora.
Todos, à partida, devem ter o direito de entrar no
barco da democracia. Mas também temos o dever de
mostrar que merecemos lá entrar.

Só assim, política poderá rimar com cidadania e não
com irracionalidade carnavalesca. Não é isso que
todos queremos?


É verdade que não concordo assim muito.
Até porque nem acho o Gabriel Alves um cientista do futebol.
Mas realmente é um ponto de vista interessante.
E realmente nunca tinha pensado nisso.